sábado, 15 de março de 2008

A INÉRCIA



O meu vizinho acorda todos os dias com uma enorme determinação de fazer qualquer coisa pelo mundo. E tem pena de não ter nenhuma ideia original. Às vezes ocorrem-lhe sonhos fantásticos. Mas, assim como surgem das profundezas oníricas, assim se dissipam, logo que a lâmpada do bom senso se acende.
O meu vizinho está a ficar velho de tanto pensar. Na verdade, nem se considera grande conhecedor dos mecanismos do mundo. Nem disso, nem de nada. Toma uma aspirina por dia por causa do coração. Porém, esta prescrição médica, não altera o rumo dos acontecimentos.
Ele mora no último andar do prédio e aproveita essa vantagem para colocar moinhos de papel em todas as suas janelas e varandas. Há dias em que nem a mais pequena brisa sopra. Essa imobilidade eólica faz com que o meu vizinho fique muito deprimido. Quando isso acontece, ele compreende, com aguda lucidez e desespero, que as coisas funcionam num ritmo tão certo, que ninguém pode ficar à espera das mudanças do universo. Apesar de tudo, o coração não cessa de bater e os moinhos de papel acordam para acelerarem a vida. Há dias em que anda tudo pelos ares, em que se tem de calafetar as portas e apertar as mãos contra o peito.
Não existe nada que se possa fazer pelo mundo. O meu vizinho fecha os olhos e sonha com estradas automáticas que, como tapetes rolantes, possam transportar as pessoas para todos os sítios. O problema é que essas estradas teriam de andar a uma velocidade demasiado reduzida para que os seus utilizadores pudessem entrar ou sair.
Na casa do meu vizinho encontram-se muitos cadernos de papel quadriculado espalhados por cima de todas as mesas. Nessas folhas, existem inúmeros desenhos feitos com base em cálculos matemáticos. Também há um sem fim de maquetas, que o meu vizinho não consegue explicar. São miniaturas cheias de alavancas, roldanas e planos inclinados. Nenhuma daquelas engenhocas funciona. E as partes que têm algum movimento, deslizam ou rodam, mas sem qualquer finalidade.
O meu vizinho pensa na vida, contudo, não sabe nada de assuntos práticos. Apenas sonha e tem fascínio por sítios altos. Se pudesse, inventaria um elevador que nunca parasse de subir.
Ele não tem ilusões quanto ao rumo da humanidade. É exactamente por isso que quer dar o seu melhor. A mulher com quem tinha casado há mais de quarenta anos, cansou-se de o acompanhar naquelas especulações existenciais e deixou-o. A partir do momento em que passou a viver sozinho, ficou mais à vontade e deixou as maquetas espalhadas pelo chão.
Agora tudo é mais fácil. Junto dos moinhos de papel, pôs vasos com girassóis que cresceram de uma forma descomunal. Dentro de casa, já quase não se vê a luz do dia. Isto não lhe faz qualquer diferença, uma vez que está tão absorto no labirinto dos seus pensamentos, que se esquece de tudo o resto. O meu vizinho é um indivíduo que vive só para dentro. Isso acontece, não por vontade própria, mas porque ele não consegue encontrar um jeito para se infiltrar no mundo real.
Não há nada que mais o entusiasme do que a acção que cada pessoa é capaz de concretizar. Na verdade, ele age para além das suas forças. Ainda assim, sente-se profundamente insatisfeito. Quanto mais pensa na vida, maior é o seu estado de prostração.
Conforme os dias passam, todos os seus projectos vão sendo abandonados. Nas suas invenções, não há uma única roda que não esteja já partida. Nem um único desenho que não tenha ficado esborratado por extensas manchas de humidade. Todas as coisas estão em ruína. No entanto, para ele, quanto mais nítida é essa decadência, mais obstinada é a sua determinação em querer fazer qualquer coisa pelo mundo. O único problema é que não sabe por onde começar. E sofre porque se apercebe que, em virtude da idade, esta indecisão pode parecer absurda, para não dizer ridícula. Ele devia preocupar-se, não com o que quer começar, mas sim com o está para acabar. E até isto é triste. Porque, de tudo quanto fez ou tentou fazer, nada concluiu. Melhor dizendo, no âmbito da inutilidade, todos os objectivos se concluem. Mesmo que fiquem por fazer. O meu vizinho está ciente de que pode morrer e deixar tudo tal como está, sem que com isso advenha qualquer prejuízo para o mundo. Apesar dessa certeza, não desiste.
À medida que o tempo passa, mais urgente e desesperada é a sua vontade de mudar o mundo. Pelas madrugadas, ouço os seus passos de um lado para o outro. Toma as aspirinas por causa do coração. Mas esse cuidado de pouco vale, uma vez que ele não descansa nem se alimenta como deve ser. Os seus girassóis continuam a crescer a um ritmo desenfreado. As folhas e as raízes já devem ter entrado pela casa adentro.
De uns tempos para cá, deixei de me cruzar com o meu vizinho nas escadas. Todos os dias ele vinha buscar a correspondência. Se deixou de o fazer, é porque deve estar acantonado dentro de casa. Os seus passos são os únicos sinais da sua existência. Mas já nem sei se os ouço, ou se eles são um hábito que ficou a ecoar nos meus ouvidos.
Para poder sossegar, teria de subir as escadas e bater-lhe à porta. Todavia, acho preferível que tudo fique como está. Enquanto os moinhos de papel estiverem activos, o mundo estará a salvo.


TEXTO: Regina
ILUSTRADO POR: João

8 comentários:

Magri disse...

Parabéns ao João pelos girassóis e moinhos de vento, que estão excelentes (feitos com a boca, não é?)!

Quanto ao vizinho da Regina, senti que devo ter algum parentesco com ele: não que eu coloque moinhos de papel ou plante girassóis, nem que tenha a pretensão de mudar o mundo, mas também sinto a falta de ideias originais e também não sei por onde começar uma série de coisas, nem como acabar outras tantas. Ah, e também tomo aspirinas, não para o coração, mas para a "bolinha".
À parte isso, ainda não faço maquetes de engenhocas, e os meus sonhos são de uma banalidade assustadora.
Mas tenho uma simpatia especial poelos sonhadores, mesmo que os sonhos não dêem em nada.

Beijinhos para os dois, e continuem a deliciar-nos, apesar de saber o esforço suplementar que estes trabalhos vos exigem.

teresa g. disse...

Este teu vizinho lembrou-me alguém...

Cultivar girassóis é uma terapia para as frustrações de quem descobre que não pode mudar o mundo. Uma coisa cuja única utilidade é ser bela - sem dúvida muito útil!

(E talvez também sirva para alimentar pássaros, aqueles que vão nascer aos molhos nesta primavera!)

Bjinhos

Je Vois La Vie en Vert disse...

Subestimação menosprezo, compaixão ? de maneria nenhuma, no meu caso é grande admiração ! Admiração pela força de vontade face a adversidade, pela atitude de luta contra todos os obstáculos (físicos e psicológicos)que encontram nos seus caminhos, pela boa disposição com que me deparo quase sempre, pela aceitação das suas deficiências sem revolta, e muito mais havia para dizer !
Não se pode mudar o mundo ? claro que sim ! Pode se mudar o mundo que nos rodeia pelas nossas acções e atitudes.
Quanto aos sonhos, o Coluche tem uma definição que gosto muito : "On croit que les rêves, c'est fait pour se réaliser. C'est ça, le problème des rêves : c'est que c'est fait pour être rêvé."
Parabéns aos autores do blog e meu desejo de longa vida !
Beijinhos verdinhos

Isabel Filipe disse...

Vim através da Magri ...

estou sem palavras pelo vosso talento ...

simplesmente PARABÉNS.

beijinhos

Ana Pallito disse...

O meu vizinho me chora. Não ouço.

Gosto tanto!!!!!

vieira calado disse...

.
Moinhos de vento...

Quem os não fez, em miúdo!

Desejo-lhe uma boa semana de Páscoa.

DD disse...

Que grande orgulho que estou a sentir: sou amiga da mãe deste "bebé"!!!
Regina, espero que este trabalho te dê tanto prazer a fazer como a mim me deu a ler.
Do João, conheço apenas pedacinhos da sua obra, mas o que vou conhecendo agrada-me e fico à espera de mais, da sua imaginação desenhada, das suas criações ilustradas. Admiro a clareza dos traços.

Penso que vocês dois completam mutuamente os trabalhos, resultando um uníssono de palavra/imagem.
Parabéns, a sério.

Quanto à madrinha do Dueto, a pessoa que completa os Três, não podia ser melhor a bênção. Graças à minha amizade com a Regina, fui lendo algumas das obras da escritora Lurdes Breda e penso que também a magia dela está presente neste blog.

Obrigada!

jorge esteves disse...

Texto e imagem: uma melodia perfeita, uma beleza poética, um prazer dos sentidos!
(acho no vizinho qualquer coisa de Quixote...)

Abraços aos dois!

(ainda bem que me disseram para cá vir!)