quinta-feira, 31 de julho de 2008

NÃO SOU DE CÁ





Desenho uma janela transparente
recorto-a com mil cuidados
e emolduro com ela metade do meu corpo

Ando assim pelas ruas
com os braços poisados no parapeito da janela
por isso nada do que acontece é comigo

Eu só estou à janela
e quase sempre
adormeço com a cabeça entre as mãos

Não posso testemunhar coisa nenhum
se houver um punhal na garganta da vitima
é provável que tenha sido o vento que o lançou

Não sei de ódios nem de intrigas
apenas me sacudo quando fico cheia de formigas



Desenho: Lurdes Breda
Poema: Regina

segunda-feira, 28 de julho de 2008

UM SURDO E UM MURO DE JARDIM



É bom poder desabafar contigo no meio deste silêncio! Aqui, nem uma mosca se ouve… Eu pelo menos não a ouço, e tu? Olha, se esta conversa te incomodar, avisa. Os amigos não precisam de ter cerimónia uns com os outros e nós somos amigos. Pelo menos nunca discordamos. Pois, pois, tens razão, os amigos não servem só para concordar connosco. Mas eu tenho a certeza que tu hás-de concordar sempre comigo. Que remédio!

Compreendes-me tão bem, apesar de seres de pedra. Também, se não fosses de pedra eu não teria este à-vontade para estar encostado a ti. Com os outros, todas as coisas têm vários significados. É que nós, pessoas, somos seres demasiado disciplinados. A nossa fugitiva rebeldia não costuma ir muito além das frases que se escrevem nas tuas costas.

Conheci um senhor, muito bem-posto, com ares de chefe de uma qualquer repartição pública, que pela calada da noite, vinha aqui e escrevia insultos contra o mundo. No entanto, durante o dia, andava sempre direitinho, até quando se sentava. Por mim, acho que mais vale lançar o fogo todo de uma vez quando ele nos vem, do que guardá-lo na alma.

O meu fogo é que não é fácil de se soltar, nem que eu queira. Raramente as pessoas ouvem os meus gestos. Contigo nem preciso de usar as mãos. Isso é que é amizade. Penso e tu ouves-me logo, não ouves? E ouves-me tão bem quanto eu te ouço a ti.

Tenho pensado nestes últimos tempos que as pessoas dão demasiada importância aos sentidos. Elas gastam dinheiro em aparelhagens de alta-fidelidade, porém, são incapazes de ouvir o mais puro dos sons: o silêncio.

Estimo muito a tua verticalidade, mas em dias como os de hoje, em que o sol até queima, dava-me jeito que tivesses uma certa inclinação. Há poucos lugares onde eu me possa albergar.

Lamento todos estes queixumes. Um dia destes compenso-te: trago uma grande lata de tinta para que fiques como novo. A verdade é que não sei se estarás interessado. Eu de ti, só espero essa música que me dás… Música de flores!



Desenho: João
Conto:
Regina

terça-feira, 1 de julho de 2008

O RECUPERAR DAS COISAS PERDIDAS

Há momentos em que tudo nos desaparece das mãos
as chaves, as moedas, os óculos, o jornal...
e andamos de um lado para o outro
pensando nas coisas que não estão em lado nenhum,
sentindo os pés dormentes,
sentindo a memória confusa e apagada.

Depois, de tanto repetir o mesmo chão
de trás para a frente, sem nenhuma pista,
sem nenhum rasto que dê para acreditar,
vamos encontrando as portas, as escadas, os armários...
e ficamos tão pesados
como se o mundo inteiro nos caísse nos braços
adormecendo em paz,
no pequeno espaço vazio do nosso coração.




Regina
temporariamente a solo