segunda-feira, 28 de julho de 2008

UM SURDO E UM MURO DE JARDIM



É bom poder desabafar contigo no meio deste silêncio! Aqui, nem uma mosca se ouve… Eu pelo menos não a ouço, e tu? Olha, se esta conversa te incomodar, avisa. Os amigos não precisam de ter cerimónia uns com os outros e nós somos amigos. Pelo menos nunca discordamos. Pois, pois, tens razão, os amigos não servem só para concordar connosco. Mas eu tenho a certeza que tu hás-de concordar sempre comigo. Que remédio!

Compreendes-me tão bem, apesar de seres de pedra. Também, se não fosses de pedra eu não teria este à-vontade para estar encostado a ti. Com os outros, todas as coisas têm vários significados. É que nós, pessoas, somos seres demasiado disciplinados. A nossa fugitiva rebeldia não costuma ir muito além das frases que se escrevem nas tuas costas.

Conheci um senhor, muito bem-posto, com ares de chefe de uma qualquer repartição pública, que pela calada da noite, vinha aqui e escrevia insultos contra o mundo. No entanto, durante o dia, andava sempre direitinho, até quando se sentava. Por mim, acho que mais vale lançar o fogo todo de uma vez quando ele nos vem, do que guardá-lo na alma.

O meu fogo é que não é fácil de se soltar, nem que eu queira. Raramente as pessoas ouvem os meus gestos. Contigo nem preciso de usar as mãos. Isso é que é amizade. Penso e tu ouves-me logo, não ouves? E ouves-me tão bem quanto eu te ouço a ti.

Tenho pensado nestes últimos tempos que as pessoas dão demasiada importância aos sentidos. Elas gastam dinheiro em aparelhagens de alta-fidelidade, porém, são incapazes de ouvir o mais puro dos sons: o silêncio.

Estimo muito a tua verticalidade, mas em dias como os de hoje, em que o sol até queima, dava-me jeito que tivesses uma certa inclinação. Há poucos lugares onde eu me possa albergar.

Lamento todos estes queixumes. Um dia destes compenso-te: trago uma grande lata de tinta para que fiques como novo. A verdade é que não sei se estarás interessado. Eu de ti, só espero essa música que me dás… Música de flores!



Desenho: João
Conto:
Regina

3 comentários:

teresa g. disse...

Olha, como sabes os meus neurónios andam um pouquito lentos, e talvez eu não tenha apanhado o que pretendes transmitir. Mas lembrou-me de repente aquela música do Simon & Garfunkel:

I am a rock,
I am an island.

And a rock feels no pain;
And an island never cries

Blimunda disse...

Querida, como eu entendo este surdo! Por tantas e tantas vezes me apetecer ser desprovida desse sentido tenho medo de vir a ser ainda mais castigada.

Graça Pires disse...

Ouvir o silêncio...
Gostei muito do texto. Beijos.