segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Blog temporariamente em hibernação.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

DESPERTAR

Tudo parece um sonho bom, nem dá para acreditar! Foi um longo caminho até aqui. Um caminho feito ao contrário, mas que nos ensinou a crescer. E pensar que, ainda há pouco tempo, a última coisa que queríamos era receber lições, fosse de quem quer que fosse... Tínhamos as nossas próprias regras e só essas nos interessavam.
Tenho um nó na garganta que quase me faz chorar. Bolas! Não posso deixar que ninguém perceba. Serei a única a sentir este aperto? A malta está habituada a esconder as emoções. É que esta cena das pieguices não dá com nada...
Seja como for, o Miguel tinha de estar aqui. E não está…
— Susy... Acorda! Que cara de zombie! Tudo bem?
— Sim, claro... Só um pouco ansiosa. Achas que vai dar certo?
— Oh, não tem como dar errado, miúda.
O Necas é sempre tão confiante! Como o resto do pessoal, diga-se... É isso que nos une! É a primeira vez que estou insegura. Tenho medo de falhar, de subir ao palco e não conseguir cantar.
Estou mais nervosa do que no dia em fugi pela primeira vez das aulas com a malta. O esquema estava o tão bem preparado que não havia o que recear. Os rapazes conheciam-se todos, só eu é que fui apresentada pela Tânia.
Receberam-me numa boa! O Necas, o Hugo, o Miguel, o Rafa...
Senti logo que aquela era a minha tribo. Até aí, vivia tão afastada de tudo e de todos! As pessoas que me rodeavam não me davam espaço, faziam questão de transformar o meu mundo num inferno.
Não tinha onde me esconder. Em casa, o meu padrasto estava sempre a dar palpites, como se tivesse alguma coisa a ver comigo. Criatura insuportável! E a tontinha da minha mãe sem fazer caso. Sempre por ele, nunca por mim...
E a escola, meu Deus, a escola! Um castigo que tinha de cumprir sem saber porquê nem para quê... Uma perda de tempo, pois tinha a certeza de que o meu futuro não passava por ali. Essa certeza fazia-me ser indisciplinada. Como não estava nem aí para a matéria, tinha de me entreter de qualquer maneira. Se ao menos me deixassem estar em paz com os phones nos ouvidos, a ouvir a minha musiquinha, não perturbaria ninguém...
Em vez disso, era obrigada a distrair-me com outras cenas. E a verdade é que tinha imaginação! Os “stôres” é que não alinhavam na minha forma alternativa de participar. Se reparassem bem, veriam a dinâmica que eu passava para os meus colegas. A melhor foi quando soltei o meu hamster na sala de EVT. Toda a gente divertida e a professora a dar gritinhos em cima da mesa. Que na escola não são permitidos bichos de estimação!... Já se viu regulamento mais estúpido?
Por esta e por outras é que alinhei logo no desafio da Tânia. Tanto mais que havia um teste de matemática marcado... Nem pensar! Ela já me tinha falado algumas vezes que andava com um grupo fixe, um grupo que organizava umas coisas super loucas e no qual poderíamos libertar as energias.
Não havia perigo, o grupo só queria divertir-se, tudo numa boa, sem prejudicar ninguém. A cena que mais nos animava era voar com os skates, sobretudo, pelas escadas abaixo e por cima dos muros.
Ainda bem que eu já tinha prática no assunto e fiz boa figura diante dos meus novos amigos. Só o Miguel demorou a dar-me a sua aprovação. Isso pôs-me nervosa, porque senti logo uma necessidade inexplicável de lhe agradar. Agora sei que o Miguel se fazia de duro apenas para impressionar.
Além dos skates, tínhamos montes de outros passatempos. De tal modo que deixei de ir à escola quase por completo. A directora de turma avisou lá para casa, mas a sorte é que ninguém ligou, nem o metido do meu padrasto. A minha família toda achava-me um problema sem solução.
Para mim, foi um período feliz. Deixei de me sentir sozinha e até o Miguel começou a dar-se bem comigo. Para falar verdade, começou a tratar-me como se eu fosse uma princesa. Nunca na vida tinha tido tantos mimos, nunca me tinha sentido especial.
Todos os rapazes eram cúmplices por viverem na mesma instituição, mas o Miguel era o único que não tinha parentes, nem afastados. Teve de aprender a safar-se sem ajudas. Isso tornou-o forte, destemido e até um bocadito arrogante. Sabendo destes factos, mais encantada me sentia por ele se desarmar diante de mim.
Afinal, havia tantas formas divertidas de passar o tempo, que a última coisa que queríamos, era pensar ou preocupar-nos com o futuro. O futuro era uma cena de cotas, assunto para sermões e missas cantadas.
Não, a nossa música era outra! Em casa da Tânia podíamos estar à vontade, a ouvir altos sons. Os pais trabalhavam até tarde e não a controlavam em nada. Invejávamos tal sorte, embora ela não parecesse muito entusiasmada com a independência que tinha. Era difícil perceber a melancolia da Tânia em relação a isso. Mas não fazíamos perguntas, já que a sua casa nos servia de refúgio! Lá, ouvíamos música, conversávamos, jogávamos consola, enfim...
Porém, a rua é que era o nosso território. Éramos os audaciosos exploradores da selva urbana! Não tínhamos medo dos becos sem saída, porque sabíamos vencer todos os obstáculos. Saltávamos, braços abertos, de qualquer altura, como pássaros cheios de alegria.
Nas tardes de montanha-russa, os nossos risos voavam numa vertigem sem fim. O mundo todo, ao contrário, fazia com que as coisas ficassem mais arrumadas, mais nos sítios certos. Sim, até as nossas ideias assentavam melhor dentro da cabeça!
Só a Tânia é que ficava agarrada ao solo, porque era pouco dada a l+oopings. Vingava-se nas pipocas, mas nem assim se consolava. Disse-nos uma vez:
— Todos os meus sacos de pipocas estão vazios...
— Ena, essa é muito profunda! — gozou o Rafa.
Mas esta e outras provocações não eram levadas a mal, pois o grupo era marcado por uma total cumplicidade.
Embrenhados com tamanhas aventuras, nunca mais voltámos à escola... Viva! Escola para quê? O engraçado é que parecia que ninguém dava por nada.
Deixámos de ter horas marcadas e os dias começaram a entrar pelas noites adentro. Adormecíamos em qualquer lugar, com os olhos esfarrapados de estrelas. Elas cresciam nos nossos sonhos...
Por isso, quisemos segui-las para além dos limites da cidade. Caminhámos sem rumo, orientados apenas pela vontade de encontrar a alma do mundo. E foi fácil chegar ao denso silêncio da floresta, invadir os seus trilhos mais secretos. Tudo para podermos vislumbrar melhor as estelas.
Estávamos maravilhados pela beleza do céu, o universo nunca se tinha mostrado tão mágico! Mas, o silêncio e a escuridão à nossa volta, pela primeira vez, fizeram-nos sentir vulneráveis.
Aconchegámo-nos mais uns aos outros, porém, surgiam pequenos ruídos assustadores, que não sabíamos se era de corujas ou de outros seres mais tenebrosos... Nós, os audaciosos, estávamos com medo. E não tardou nada para estarmos em pânico!

Por tanto querer sair dos limites, acabámos por nos perder. Não sabíamos o caminho de regresso, essa era a verdade. Para sair dali, daquele escuro arvoredo, tínhamos de arriscar. O perigo parecia rondar-nos e qualquer gesto acabaria por nos denunciar.
Por muito pavor que sentíssemos, não dava para ficarmos ali parados, era urgente procurar uma saída. Miguel, destemido como sempre, prontificou-se para avançar sozinho na verificação da área. Claro que discordámos em uníssono contra tal ideia. Naquela situação, era fundamental mantermo-nos todos juntos. O problema é que Miguel tinha tanto de destemido como de voluntarioso. E foi sem darmos conta, que ele desapareceu de um momento para o outro.
Começámos a chamá-lo em todas as direcções, convencidos de que estaria por perto. Mas os minutos foram passando sem que obtivéssemos resposta. A partir dali é que nos sentimos verdadeiramente perdidos! Um pesadelo! Entrámos num terrível pesadelo...
A noite devorou-nos duma forma medonha, nas suas goelas só havia precipícios de bruma e escuridão. Deixámos de ter pé, sentíamo-nos a escorregar pelas ravinas do desespero. Estávamos deveras perdidos!
Nem coragem tínhamos para continuar a chamar. A voz ficou-nos presa por dentro, de tal jeito que só ouvíamos o bater dos próprios corações. Foi nessa altura que a Tânia entrou em estado de choque, mas, por uma razão tão cómica, que nos fez rir a todos e aliviou um pouco a nossa tensão.
— Caramba! — gritou, como se tivesse sido picada por algum insecto — Estamos sem comida!... Nem uma bolacha sequer!
— Oh, apanha-se já um coelho! — brincou o Necas, em tom de ironia e nítida chacota. Mas, a verdade é que cada um vivia o medo à sua maneira. Ora, se reflectíssemos bem, não havia muitos motivos para tal, além do escuro e do desconhecimento do terreno. Miguel era esperto e, com certeza, saberia livrar-se de qualquer problema.
O melhor que tínhamos a fazer era mesmo manter a serenidade e esperar que o Miguel regressasse trazendo a luz da madrugada. Não havia perigo, poderíamos até dormitar para que o tempo passasse mais depressa. Éramos crescidinhos para ficarmos apavorados por nada!
Por nada?! O lusco-fusco do alvorecer fez-nos acordar ainda mais sobressaltados... Do Miguel, nem sinal! Olhámos em redor e muito pior do que a escuridão, eram os arbustos altos e fechados, dos quais não poderíamos fugir. Estávamos presos numa armadilha e mesmo que gritássemos, quem nos iria socorrer?
Não tínhamos ninguém que se importasse connosco, que desse pela nossa falta... Há tanto tempo que tínhamos deixado de existir!
— Temos de telefonar para qualquer lugar... — exclamou o Rafa, com a respiração meio ofegante.
— Este cromo não existe! — contrapôs Hugo, bastante irritado. — Se tivéssemos rede, acaso teríamos passado aqui a noite toda? Ó meu! Vê se atinas...
Rafa, envergonhado, e para tentar desfazer a má impressão, saca do bolso aquilo que poderia ser finalmente um trunfo. Tratava-se de um objecto que, a princípio, não identificámos. Teve de nos explicar:
— Isto é uma bússola! Nas aulas de geografia aprendi que com este instrumento, ninguém se perde.
— Que máximo! Este puto é um crânio! — proferiu o Necas, impaciente e carregado de má vontade. — Para quê serve essa coisa?
— Bem... Acho que... seguindo a seta, podemos encontrar o Norte...
— Hmmm! E depois?...
— Depois... sei lá! Mania de complicarem tudo... — resmungou o Rafa, de sobrolho franzido. Ele só queria ajudar, mas não conseguia porque todos se mostravam de mau humor. Se o grupo encarasse aquilo como uma aventura, talvez tudo fosse mais fácil de resolver. Só que não havia hipótese. A Tânia, com os nervos à flor pele, gemia de fome e todos nós estávamos preste a explodir.
A mim, o que mais me preocupava era o Miguel. Que lhe teria acontecido? Tinha um pressentimento que me angustiava profundamente. Adivinhava que ali por perto existiam íngremes penhascos, abismos, escarpas a caírem para o mar.
— Ouvem, ouvem o mar? — murmurei, quase num queixume. Olharam-me como se fosse maluca…
— Que mar? — perguntam em coro.
— Aquele que levou o Miguel! — As lágrimas soltaram-se sem pudor, dando largas à minha aflição. Com esta minha abertura de alma, fiz com que os outros também se despojassem de toda a rebeldia juvenil e passassem a agir como meninos tristes e desamparados. Naquele momento, a única coisa que desejávamos era a protecção de uma casa, de uma família, ou até, imagine-se, de uma escola...
Tantas oportunidades desprezadas, lamentámos! Que seria de nós? Ficaríamos ali até quando? Que coisa terrível. As horas iam passando e nada... Só a sede, a fome e o cansaço...
Foi quando estávamos no limite das nossas forças que ouvimos, ao longe, o barulho de um motor. Em seguida, chegou-nos o som de sirenes, que se deslocavam em várias direcções. Haveria fogo? Apurámos mais os sentidos e não detectámos nada. Mas então, o que estaria a acontecer?
O milagre! Jipes dos guardas-florestais e ambulâncias, patrulhas com radares, cães pisteiros.... Todos os meios activados à nossa procura... Mal podíamos acreditar! E o mais incrível ainda, foi que a operação de resgate era chefiada pelos pais da Tânia, pelos responsáveis do lar onde viviam os rapazes, por muitos professores da escola... E a correrem para mim, de braços abertos, vinha a minha mãe, o meu padrasto, os meus tios e alguns vizinhos!
Meu Deus, que emoção!... Afinal, toda a gente se preocupava connosco, tínhamos sido seguidos nas nossas deambulações, observados ao longe, passo a passo, para o caso de cairmos. Permitiram-nos uma liberdade, mas não se pouparam a mil cuidados e desvelos!
Sim, tínhamos aprendido a lição... A partir daquele dia crescemos, tornámo-nos conscientes e responsáveis, jovens com muita vontade de recuperar o tempo perdido.
Agora existe a dor da perda do Miguel que, tal como o meu coração adivinhara, se tinha incautamente precipitado por uma ravina e caíra ao mar.
Para que o seu desaparecimento não tenha sido em vão, nós esforçamo-nos para dar o nosso melhor. Dedicamos-lhe cada vitória, cada desafio que enfrentamos. Nas derrotas, encontramos na sua lembrança a força que precisamos para seguir a nossa jornada pela vida!
Sempre me disseram que eu tinha uma voz bonita. Resolvi aproveitar esse dom, como diz a minha mãe, daí que eu e os meus companheiros tenhamos formado uma banda. Inacreditavelmente, o meu padrasto ofereceu a garagem para nós ensaiarmos.
Agora, que estamos prestes a acabar o ano lectivo, eu e os meus companheiros iremos subir ao palco, montado no ginásio. É a festa de final de ano. De mãos dadas, encaminhamo-nos para o palco. Há um minuto de silêncio em memória do Miguel. Depois, um mar de aplausos ressoa por todo o ginásio. Um acorde de viola marca o início da melodia. A minha voz cresce, cresce… É uma bandeira de esperança a fender a linha infinita do horizonte, onde o futuro se esconde!

Desenhos: Lurdes Breda
Texto: Regina

Conto juvenil publicado no jornal “NOTÍCIAS DE COLMEIA”

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

TANTOS TESOUROS


Gosto das manhãs brancas como o sal
É por isso que não acordo
Para manter as janelas perfeitas
Sem o vapor cristalizado das narinas

Não acordo
E cubro de ouro todos os meus espelhos
Porque quero ter certeza de que vou crescer
Retendo a respiração até aos pés

O sal refinado duma flor
É tudo quanto preciso

E tenho mais
Tenho o pó que sobe num remoinho
Para fazer um desenho dourado



Desenho: Lurdes Breda
Poema: Regina

sábado, 30 de agosto de 2008

VAIDADES


a Lua contempla-se no espelho
está fria e sente-se  amarela por dentro
examina a sua face
minguante nos cantos dos olhos
sabe que nunca poderá ver
o ouro claro das madrugadas

dorme e é azul
a sua coberta feita de búzios

dorme porque tem os olhos cheios
crescentes desse contemplar


Desenho: Lurdes Breda
Poema: Regina

quinta-feira, 31 de julho de 2008

NÃO SOU DE CÁ





Desenho uma janela transparente
recorto-a com mil cuidados
e emolduro com ela metade do meu corpo

Ando assim pelas ruas
com os braços poisados no parapeito da janela
por isso nada do que acontece é comigo

Eu só estou à janela
e quase sempre
adormeço com a cabeça entre as mãos

Não posso testemunhar coisa nenhum
se houver um punhal na garganta da vitima
é provável que tenha sido o vento que o lançou

Não sei de ódios nem de intrigas
apenas me sacudo quando fico cheia de formigas



Desenho: Lurdes Breda
Poema: Regina

segunda-feira, 28 de julho de 2008

UM SURDO E UM MURO DE JARDIM



É bom poder desabafar contigo no meio deste silêncio! Aqui, nem uma mosca se ouve… Eu pelo menos não a ouço, e tu? Olha, se esta conversa te incomodar, avisa. Os amigos não precisam de ter cerimónia uns com os outros e nós somos amigos. Pelo menos nunca discordamos. Pois, pois, tens razão, os amigos não servem só para concordar connosco. Mas eu tenho a certeza que tu hás-de concordar sempre comigo. Que remédio!

Compreendes-me tão bem, apesar de seres de pedra. Também, se não fosses de pedra eu não teria este à-vontade para estar encostado a ti. Com os outros, todas as coisas têm vários significados. É que nós, pessoas, somos seres demasiado disciplinados. A nossa fugitiva rebeldia não costuma ir muito além das frases que se escrevem nas tuas costas.

Conheci um senhor, muito bem-posto, com ares de chefe de uma qualquer repartição pública, que pela calada da noite, vinha aqui e escrevia insultos contra o mundo. No entanto, durante o dia, andava sempre direitinho, até quando se sentava. Por mim, acho que mais vale lançar o fogo todo de uma vez quando ele nos vem, do que guardá-lo na alma.

O meu fogo é que não é fácil de se soltar, nem que eu queira. Raramente as pessoas ouvem os meus gestos. Contigo nem preciso de usar as mãos. Isso é que é amizade. Penso e tu ouves-me logo, não ouves? E ouves-me tão bem quanto eu te ouço a ti.

Tenho pensado nestes últimos tempos que as pessoas dão demasiada importância aos sentidos. Elas gastam dinheiro em aparelhagens de alta-fidelidade, porém, são incapazes de ouvir o mais puro dos sons: o silêncio.

Estimo muito a tua verticalidade, mas em dias como os de hoje, em que o sol até queima, dava-me jeito que tivesses uma certa inclinação. Há poucos lugares onde eu me possa albergar.

Lamento todos estes queixumes. Um dia destes compenso-te: trago uma grande lata de tinta para que fiques como novo. A verdade é que não sei se estarás interessado. Eu de ti, só espero essa música que me dás… Música de flores!



Desenho: João
Conto:
Regina

terça-feira, 1 de julho de 2008

O RECUPERAR DAS COISAS PERDIDAS

Há momentos em que tudo nos desaparece das mãos
as chaves, as moedas, os óculos, o jornal...
e andamos de um lado para o outro
pensando nas coisas que não estão em lado nenhum,
sentindo os pés dormentes,
sentindo a memória confusa e apagada.

Depois, de tanto repetir o mesmo chão
de trás para a frente, sem nenhuma pista,
sem nenhum rasto que dê para acreditar,
vamos encontrando as portas, as escadas, os armários...
e ficamos tão pesados
como se o mundo inteiro nos caísse nos braços
adormecendo em paz,
no pequeno espaço vazio do nosso coração.




Regina
temporariamente a solo

sábado, 7 de junho de 2008

BATER À PORTA DA SOLIDÃO


Sem sequer me conhecer, convidou-me logo a entrar. Antes mesmo de eu lhe poder explicar que era apenas uma vendedora a tentar impingir-lhe os meus produtos, ofereceu-me café e pôs tudo quanto tinha sobre a mesa.

Ela não dava espaço às minhas palavras, dizia-me que vivia sozinha há quinze anos e que precisava muito de encontrar um anel que tinha perdido há cerca de uma hora. O melhor seria começar a procurar na sala; ver debaixo dos sofás, dentro dos cinzeiros e atrás dos livros.

Queria desculpar-me, dizer que tinha muita pena, mas que não podia ficar. Ela, porém, não me ouvia e deu-me um banquinho para eu espreitar em cima de uma prateleira. Aquilo tornou-se uma invasão à minha disponibilidade, um jogo para o qual eu simplesmente não tinha tempo.

Ela era uma velhinha toda branca, guarnecida de sorrisos e de simpatia. Comparado o seu corpo já pobre de equilíbrio, eu tinha a juventude que lhe convinha, pois, podia chegar com facilidade aos lugares mais perigosos da casa.

Olhei para o meu relógio de pulso, que, entretanto, tinha parado. Ela encheu-me as mãos de biscoitos e puxou-me atrás dela, como a um gato, pela escada acima. No seu quatro havia dúzias e dúzias de caixinhas espalhadas pelo chão, as quais provavelmente contavam a história da sua vida. Havia ainda uma boneca com laços azuis e um jeito dormente de não dar por nada.

Eu tinha mesmo de me libertar daquela melodia, não podia ficar no meio das suas rosas. O anel que ela procurava não devia fazer-lhe falta nenhuma. Mas ela sentou-se numa cadeira de baloiço e contou-me a saudade que tinha daquele anel, que, de entre todos, era o mais pequeno.
Entrava uma ligeira brisa pelas cortinas transparentes do seu olhar. Ela tinha um livro nas mãos e de repente ficou tão ausente, que eu não tive coragem para quebrar o seu silêncio. Depois, propôs que, se eu lhe encontrasse o anel, ela me ofereceria um livro sobre como cuidar das flores.

Eu não possuía forças para sair fora daquele fogo cerrado de ternura. Além disso, ela não me ouviria nem que eu lhe gritasse aos ouvidos. Agitei os braços em sinal de rendição, porém, ela não via a minha bandeira branca. Arrastava-me já pelo corredor e abria a varanda da sua solidão: as flores são como as crianças, precisam de ser elogiadas e admiradas todos os dias.

Se eu tivesse vindo com mais vagar, talvez não me importasse de ouvir as suas longas memórias. Contudo, naquele dia, eu estava ali para vender os meus produtos e, por isso, tinha de recuperar o meu poder de persuasão, se queria evitar a completa derrota.

A minha voz sonante e forte, falou-lhe acerca de todos os catálogos que eu encontrara na mala. Mas ela permanecia numa fortaleza tão cheia de tranquilidade, que nenhuma promoção ou desconto, por mais fantásticos que fossem, a conseguiriam abalar.

Levou-me consigo até aos armários da cozinha, onde tudo tinha um sabor a mel puro. Lá fora, era quase noite e eu tinha de fugir de qualquer maneira. A porta estava aberta, mas alcançá-la era como quebrar um encantamento, não via como desligar-me do seu abraço. Deveria confessar-lhe o meu desdém, dizer que não me interessava minimamente por flores, nem tinha paciência para procurar coisas pequenas e insignificantes. Precisava de colocar um ar grave e sério no rosto, de lhe mostrar toda a minha mesquinhez e o meu veneno.

O meu relógio continuava quieto e eu já tinha perdido o valor real dos meus produtos e a distância com a qual sempre lidara com os outros.

Desisti. De mim, começaram a nascer os primeiros gestos desinteressados, os primeiros cânticos de ternura. Peguei-lhe nas mãos e agradeci o tempo que me dera. Olhei e vi o anel nos seus dedos.


DESENHO: João (enquanto espera pelos resultados dos exames...)
TEXO: Regina

quinta-feira, 29 de maio de 2008

SURPRESA!



Olá João!
Embora com um diazito de atraso… Queremos festejar o teu dia!!!
Desejamos, acima de tudo, que os teus sonhos se cumpram, porque...
Tu sabes ir além dos limites!
E a tua vontade é tão grande e firme
Que com ela se desenha a magia dos sonhos,
A alegria das árvores dançando
De ramos abertos
Na luz clara da amizade,
O canto das pedras e das águas
Que fazem correr os rios das manhãs,
A grandeza dos ventos e do Sol
Que vão amadurecendo as searas
Onde o pensamento se transforma e ergue!

Sê jovem até ao futuro do futuro...


Beijinhos da Lurdes e da Regina

sábado, 17 de maio de 2008

NASCER


Foi-nos dado
uma terra coberta de flores
um mar repleto de peixes
um céu azul
com um sol e estrelas






Fizemos
uma estufa
uma rede
uma nave
para chegar ao Universo




E agora, quando começa a vida
ou a morte?


PINTURAS: Anabela Barata
POEMA: Regina

Nova etapa...

O objectivo maior deste blog é o estar aberto para que pessoas com diferentes formas de deficiências, possam nele mostrar as suas múltiplas aptidões.

Assim, é com muito orgulho que vamos ter a colaboração dos alunos de E.V.T. da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra - APCC.


BONS ESTUDOS, JOÃO!

Vai haver uma pequena mudança no Dueto de Três. Anunciamos, com imensa alegria que, de agora em diante, o João não vais dispor do tempo livre que inicialmente havíamos previsto. Isto porque, conforme esperamos, em breve entrará na Universidade Aberta, realizando assim o seu mais elevado sonho. Desejamos-lhe toda a sorte que a sua determinação merece. Força, amigo!


Mas continua connosco sempre que puderes...

quarta-feira, 14 de maio de 2008

“Estrelas que Voam para os Céus – Aceitar os Desígnios de Deus”


“Estrelas que Voam para os Céus – Aceitar os Desígnios de Deus”

“Estrelas que Voam para os Céus” é uma obra da autoria do Joaquim Santos, cujos direitos de autor da primeira edição – entretanto, esgotada – reverteram para a associação “A Nossa Âncora”.
Já em segunda edição, este livro trata da recolha e compilação dos testemunhos de vários pais que perderam os filhos. Leva a um melhor entendimento do “desafio” da longa caminhada do luto, do sentimento de dor pela partida de um(a) filho(a)... Revela quais as maiores dificuldades no luto, a vivência deste estado com fé, ou não, e aquilo que os pais acreditam que aconteceu, ou continua a acontecer, após a partida dos seus filhos. Uma homenagem a todas as maravilhas que nunca se perdem em tempo nenhum: são estrelas que brilham e povoam os céus!
“Estrelas que Voam para os Céus” foi prefaciado pela escritora Rita Ferro: “Procurei, procurei, procurei, e não encontrei metáfora mais bela para vos oferecer neste Prefácio que melhor se aproximasse da dimensão da vossa dor, da vossa revolta e da vossa aceitação. Se a morte, a verdadeiramente morte, é o esquecimento, então os vossos filhos não morreram. Nunca estiveram tão vivos, tão próximos, tão dentro de vós.”
A nota de abertura coube a Emília Agostinho – presidente da associação “A Nossa Âncora” –, a leitura da teologia foi feita por Luís Miguel Ferraz – jornalista, teólogo da diocese de Leiria-Fátima – e a leitura da psicologia por Carlos Pires – psicólogo clínico, professor da Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra.





O autor:

Joaquim Santos é natural de Pousos e reside em Colmeias – Leiria.
Jornalista, é director do mensário “Notícias de Colmeias”, tendo sido, inclusive, o seu fundador. Depois de uma passagem pelo semanário “Região de Leiria”, é jornalista profissional no semanário “O Mensageiro”, do Seminário Diocesano de Leiria.
Recebeu vários prémios jornalísticos e obteve outros reconhecimentos de âmbito profissional e literário – merecedor de votos de louvor por parte de algumas instituições nacionais.
Soma diversas participações sociais e cívicas, em acontecimentos de índole cultural, social, política e desportiva.
Enquanto jovem, foi elemento destacado no desporto distrital; um dos primeiros produtores e realizadores de programas de rádio, em várias estações de Leiria; actor convidado em três novelas portuguesas; membro da Assembleia de Freguesia de Colmeias; orador em vários colóquios, júri em festivais de música e em desfiles de moda; colaborador em estudos de mercado para uma instituição de defesa do consumidor; coordenador de sondagens para institutos e universidades públicas e membro da equipa de marketing do Europeu de Futebol de 2004.
Representou, no distrito de Leiria, o grupo português da ONG “International Friendship League”, que trabalha próximo da UNESCO e ONU, e é membro fundador do Conselho Nacional da Juventude.
Representa, actualmente, a associação “A Nossa Âncora” nos distritos de Leiria e Santarém, desde Outubro de 2006, ano em que viu partir a sua filha Eduarda Santos, a EDUARDA DE SEMPRE.

CONVITE

O lançamento do livro “Estrelas que Voam para os Céus – Aceitar os Desígnios de Deus”, realizar-se-á no dia 17 de Maio (Sábado) de 2008, pelas 16.30 horas, na Galeria Municipal de Montemor-o-Velho (praça da República).
Haverá um momento musical a cargo da jovem banda BlindNight.
A apresentação da obra será efectuada por Luís Miguel Ferraz, teólogo da Diocese Leiria-Fátima e da escritora Lurdes Breda.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

O PROBLEMA

Um monstro voador entrou-me pela janela. Eu estava debruçado sobre a mesa a fazer as contas. O monstro mexia-se atrás de mim enquanto eu acabava de fazer as contas. Não tive ocasião de olhar para ele, porque as contas absorviam toda a minha atenção. A minha mãe entrou e perguntou-me se eu queria um café; respondi-lhe que não tinha tempo, que tinha de acabar as contas sem falta. Tive vontade de lhe pedir que enxotasse o monstro e fechasse a janela, mas estava tão compenetrado nas contas que não disse nada. Além disso, não tenho bem a certeza se, quando a minha mãe entrou, o monstro já cá estava. Mas é provável que não, pois quando o monstro entrou, já eu tinha sobre a mesa uma xícara de café frio que a minha mãe teimara em trazer, mas que eu não bebera por falta de tempo.
E agora o tempo urge; tenho de acabar as contas que, desde que o monstro entrou, não se solucionam nem por nada. O algarismo que escrevia no momento em que ele entrou, foi o último.
Um monstro voador entrou-me pela janela há uns escassos mil anos. Não tive ainda tempo para o ver, mas ele aguarda-me, guloso e negro.
É um monstro que não consigo resolver.


Regina

terça-feira, 22 de abril de 2008

WINDSURF


lentamente a mão
alisando a textura áspera do mar
a mão plana e sem linhas definidas
um olhar interrompido
pelas rochas abertas no chão

tudo é brusco —
paredes redondas de espuma
rasgadas a contra-vento

túnel de espanto e densidade
tão intacto como se fosse de chuva seca
onda gigante de rio magoado

marés fechadas e labirínticas
por onde a minúscula figura
(anjo precipitado e marginal)
navega num equilíbrio único
de sal e esquecimento

mar cortado ao meio
por um deus que caminha sobre as águas



Regina

quarta-feira, 16 de abril de 2008

VALIDADES

Amanhã terei menos um dia de futuro.

Já não crescerei mais em altura,
de hoje em diante
só poderei engordar ou emagrecer
conforme o meu estado de espírito.
Não sei o que me fará melhor
se uma esperança no meu destino
ou um chocolate com avelãs...

Fé e desconfiança
num braço de ferro,
desvantagem de muitos contra ninguém...

A indiferença
entre um café bem forte
e uma filosofia pessimista...

Nunca farei uma viagem à Índia,
nunca me escaparei desta eternidade...

é sempre agora, agora, agora,
agora sê-lo-á sempre,
até zero.

Há verdades. Sim.
Mas tudo o resto é absolutamente falso.

O comércio está prestes a fechar...
Só me falta o açúcar e a liberdade.

As palavras são um produto
para consumir antes do silêncio.




NOTA: Ainda sem o João e sem ilustrações!

quinta-feira, 10 de abril de 2008

ENERGIA EÓLICA

Alto do Marão



roda o vento no cimo do mundo
quatro braços a rodar
quatro destinos cardeais
de gigantes subitamente perfeitos
numa súbita solidão
tão intensa como o pôr do sol








Este é um blog colectivo... Mas de momento, o João está ocupado com actividades académicas muito importantes! Faço esta postagem sozinha para não quebrar o ritmo.

sexta-feira, 28 de março de 2008

A ÁGUA DO UNIVERSO




Quando chega às searas maduras
o pássaro
respira debaixo das águas
como uma porta aberta

O pássaro entra pelo céu adentro
porque sabe que é preciso nascer

Uma vontade divina e primordial
no lugar do cosmo

E o corpo sem nenhum mar
sem nenhum pudor
respirando até à morte

Na intimidade mais sonhada



DESENHO: Lurdes Breda
POEMA: Regina

quarta-feira, 19 de março de 2008

OS PÁSSAROS


Quem a conhece garante: “Ela só se levanta para servir o chá. Depois volta para o seu cantinho e lá fica o resto do serão sem que ninguém se aperceba da sua presença”.

A sua casa é perfeita, apesar das gaiolas espalhadas por toda a parte: nas paredes, nos tectos, atrás dos biombos, dentro dos armários, debaixo das mesas... Gaiolas vazias. Que os pássaros são para se imaginarem…Esta justificação faz parte dos seus pensamentos, apesar de nunca ninguém lhe ter ouvido dizer tal. A verdade é que ela pouco fala, limita-se a ouvir. E para além disso, só o seu sorriso, o seu sorriso mágico lhe aflora na face. Com ele, não precisa de mover as mãos para que todas as coisas se realizem, não necessita de falar para ser entendida.

A sua casa é perfeita, sobretudo, por causa das gaiolas que estão por toda a parte. A mesa da sala é extensível. À hora do chá, abre-se e é coberta por uma toada de linho branco.

Os pássaros, por serem inventados, à hora do chá esvoaçam com mais frescura pela casa toda. Em especial, por cima das cabeças das senhoras, que têm de se proteger com os finos lenços de seda. Mas graças aos pássaros nem é preciso ligar a ventoinha do tecto.

Ela costuma usar o cabelo muito curtinho e servir o chá sem bolachas, apenas com o seu sorriso a acompanhar. Há um chá diferente para cada noite e é por isso que a sua casa é perfeita.

À hora do chá faz-se silêncio e só se ouve o cantar dos pássaros. Há coisas em que é necessária muita concentração. E ela, quando serve o chá, fá-lo devagarinho, para não acordar ninguém.

No fim, senta-se no seu cantinho e pousa a chávena no regaço. Fica assim, baloiçando o seu sorriso até que todos se vão embora. Saem e fecham a porta atrás de si.

Lá dentro, as gaiolas podem ficar abertas, pois os pássaros não conseguem fugir da alma de quem os sonha.

De manhã, são eles que a fazem levantar para recolher as chávenas, tirar a toalha e fechar a mesa. As gaiolas são colocadas ao Sol.

Quem a conhece garante: “O seu sorriso é perfeito!”.

TEXTO: Regina
IMAGEM: João

terça-feira, 18 de março de 2008

Parabéns, Regina!

Querida Regina,

Desejamos que esses fabulosos girassóis, que insuflam de vida a tua imaginação, continuem a desabrochar por entre as searas do sonho e da poesia, que preenchem as margens da tua alma.
Tu própria és, para nós, como um lindo girassol, exalante de luz e de bondade.
Que Deus nos abençoe com a tua presença por muitos e muitos anos…
Feliz Aniversário!




Com carinho,
Lurdes e João.

sábado, 15 de março de 2008

A INÉRCIA



O meu vizinho acorda todos os dias com uma enorme determinação de fazer qualquer coisa pelo mundo. E tem pena de não ter nenhuma ideia original. Às vezes ocorrem-lhe sonhos fantásticos. Mas, assim como surgem das profundezas oníricas, assim se dissipam, logo que a lâmpada do bom senso se acende.
O meu vizinho está a ficar velho de tanto pensar. Na verdade, nem se considera grande conhecedor dos mecanismos do mundo. Nem disso, nem de nada. Toma uma aspirina por dia por causa do coração. Porém, esta prescrição médica, não altera o rumo dos acontecimentos.
Ele mora no último andar do prédio e aproveita essa vantagem para colocar moinhos de papel em todas as suas janelas e varandas. Há dias em que nem a mais pequena brisa sopra. Essa imobilidade eólica faz com que o meu vizinho fique muito deprimido. Quando isso acontece, ele compreende, com aguda lucidez e desespero, que as coisas funcionam num ritmo tão certo, que ninguém pode ficar à espera das mudanças do universo. Apesar de tudo, o coração não cessa de bater e os moinhos de papel acordam para acelerarem a vida. Há dias em que anda tudo pelos ares, em que se tem de calafetar as portas e apertar as mãos contra o peito.
Não existe nada que se possa fazer pelo mundo. O meu vizinho fecha os olhos e sonha com estradas automáticas que, como tapetes rolantes, possam transportar as pessoas para todos os sítios. O problema é que essas estradas teriam de andar a uma velocidade demasiado reduzida para que os seus utilizadores pudessem entrar ou sair.
Na casa do meu vizinho encontram-se muitos cadernos de papel quadriculado espalhados por cima de todas as mesas. Nessas folhas, existem inúmeros desenhos feitos com base em cálculos matemáticos. Também há um sem fim de maquetas, que o meu vizinho não consegue explicar. São miniaturas cheias de alavancas, roldanas e planos inclinados. Nenhuma daquelas engenhocas funciona. E as partes que têm algum movimento, deslizam ou rodam, mas sem qualquer finalidade.
O meu vizinho pensa na vida, contudo, não sabe nada de assuntos práticos. Apenas sonha e tem fascínio por sítios altos. Se pudesse, inventaria um elevador que nunca parasse de subir.
Ele não tem ilusões quanto ao rumo da humanidade. É exactamente por isso que quer dar o seu melhor. A mulher com quem tinha casado há mais de quarenta anos, cansou-se de o acompanhar naquelas especulações existenciais e deixou-o. A partir do momento em que passou a viver sozinho, ficou mais à vontade e deixou as maquetas espalhadas pelo chão.
Agora tudo é mais fácil. Junto dos moinhos de papel, pôs vasos com girassóis que cresceram de uma forma descomunal. Dentro de casa, já quase não se vê a luz do dia. Isto não lhe faz qualquer diferença, uma vez que está tão absorto no labirinto dos seus pensamentos, que se esquece de tudo o resto. O meu vizinho é um indivíduo que vive só para dentro. Isso acontece, não por vontade própria, mas porque ele não consegue encontrar um jeito para se infiltrar no mundo real.
Não há nada que mais o entusiasme do que a acção que cada pessoa é capaz de concretizar. Na verdade, ele age para além das suas forças. Ainda assim, sente-se profundamente insatisfeito. Quanto mais pensa na vida, maior é o seu estado de prostração.
Conforme os dias passam, todos os seus projectos vão sendo abandonados. Nas suas invenções, não há uma única roda que não esteja já partida. Nem um único desenho que não tenha ficado esborratado por extensas manchas de humidade. Todas as coisas estão em ruína. No entanto, para ele, quanto mais nítida é essa decadência, mais obstinada é a sua determinação em querer fazer qualquer coisa pelo mundo. O único problema é que não sabe por onde começar. E sofre porque se apercebe que, em virtude da idade, esta indecisão pode parecer absurda, para não dizer ridícula. Ele devia preocupar-se, não com o que quer começar, mas sim com o está para acabar. E até isto é triste. Porque, de tudo quanto fez ou tentou fazer, nada concluiu. Melhor dizendo, no âmbito da inutilidade, todos os objectivos se concluem. Mesmo que fiquem por fazer. O meu vizinho está ciente de que pode morrer e deixar tudo tal como está, sem que com isso advenha qualquer prejuízo para o mundo. Apesar dessa certeza, não desiste.
À medida que o tempo passa, mais urgente e desesperada é a sua vontade de mudar o mundo. Pelas madrugadas, ouço os seus passos de um lado para o outro. Toma as aspirinas por causa do coração. Mas esse cuidado de pouco vale, uma vez que ele não descansa nem se alimenta como deve ser. Os seus girassóis continuam a crescer a um ritmo desenfreado. As folhas e as raízes já devem ter entrado pela casa adentro.
De uns tempos para cá, deixei de me cruzar com o meu vizinho nas escadas. Todos os dias ele vinha buscar a correspondência. Se deixou de o fazer, é porque deve estar acantonado dentro de casa. Os seus passos são os únicos sinais da sua existência. Mas já nem sei se os ouço, ou se eles são um hábito que ficou a ecoar nos meus ouvidos.
Para poder sossegar, teria de subir as escadas e bater-lhe à porta. Todavia, acho preferível que tudo fique como está. Enquanto os moinhos de papel estiverem activos, o mundo estará a salvo.


TEXTO: Regina
ILUSTRADO POR: João

sexta-feira, 14 de março de 2008

Apresentação


É para mim um privilégio, serem as minhas palavras a abrirem este espaço. Um espaço que eu desejo, que possa vir a ser, tanto de partilha e de reflexão, quanto de surpresa e deslumbre pelas vertentes artísticas expostas, a todos quantos por aqui passarem.
Não posso falar da Regina e do João, sem sentir um orgulho imenso. São dois amigos fantásticos, que eu muito admiro!
A par com o lado humano e afectivo e, numa óptica mais objectiva, tenho a realçar as qualidades criadoras de ambos. Respectivamente na literatura e na ilustração, a Regina e o João dão forma a trabalhos de grande expressividade artística. A ponte entre o universo subjectivo do sonho e da fantasia, e a realidade social que os envolve, levam a que nas suas obras se entrecruzem os aspectos: humanitário, lúdico e pedagógico.
Enquanto escritora, e numa perspectiva profissional, tenho o orgulho de dizer que são inúmeras as vezes em partilhamos diferentes pontos de vista, cruzando pensamentos e ideias. Temos, inclusive, diversos projectos conjuntos.
É minha filosofia de vida acreditar no valor intrínseco de cada ser humano, independentemente das suas limitações físicas ou psíquicas. O “acreditar” pode ser a primeira pedra, das muitas que virão, para ajudar a erigir um castelo capaz de rasgar o cinzento das nuvens.
Considero, pois, relevante, para uma melhor compreensão do conteúdo e dos objectivos deste blogue, mencionar que quer a Regina e o João, quer eu própria — com as particularidades próprias respeitantes a cada um — somos deficientes motores.
É imprescindível que eu indique esta circunstância, não por uma questão de paternalismo ou comiseração, mas para que haja uma melhor compreensão e uma maior sensibilidade perante os conteúdos aqui expostos, e os obstáculos logísticos que cercam a sua execução. Que o olhar possa penetrar para além das palavras ou das imagens e que se possa escutar o silêncio, já que este pode estar preenchido de poesia…
Divulgar as capacidades intelectuais e criativas da Regina e do João foi, sem dúvida, a razão principal que levou à criação deste blogue. No entanto, seria extremamente gratificante, poder fazer desta iniciativa uma causa socialmente útil. Na medida em que promovesse a inclusão e pudesse ser, ao mesmo tempo, um incentivo para todos aqueles que deixaram de acreditar (deficientes ou não deficientes).
Gostaríamos ainda de passar a mensagem de que o cidadão deficiente, não carece de compaixão, nem tampouco é alguém incompleto. É, tão só, alguém diferente, como o são, aliás, todos os seres humanos na sua vasta globalidade.
Não se devem subestimar ou menosprezar os deficientes, colocando-os à margem de determinadas actividades, por se considerarem inaptos para as executar. É necessário encontrarem-se dimensões de equilíbrio, entre a superprotecção e a exclusão. Há que ser-lhe facultado, o sentir-se útil. Isso é fundamental para o enriquecimento da sua auto-estima.
A deficiência, também não pode, por parte dos seus portadores, ser encarada como uma defesa pessoal, para a falta de coragem em enfrentar a vida e o mundo. Deve, antes, ser pensada como um desafio! Em termos cognitivos, é preciso colocar a aprendizagem, gradualmente adquirida, ao serviço da evolução e da realização pessoais.
Alcançar o êxito dos nossos projectos, depende, sobretudo, de nós e da nossa força interior. Quanto mais árduo for o caminho a percorrer, mais gratificante será, indubitavelmente, alcançar o seu término.
Bem-vindos a todos, sem excepção. Deixem que a força, o calor, a magia, o sonho, o riso, a poesia e a cor deste espaço, tomem conta do vosso coração. Espero que ao fecharem a janela deste lugar, que para nós é de suave enternecimento, possam dizer baixinho: “Até amanhã!”. Onde quer que nós estejamos, iremos decerto ouvir… E as nossas faces encher-se-ão de luz, pois teremos, tal qual uma estrela, um amigo mais a iluminar o céu das nossas vidas!






ACREDITAR

Foi o calor da tua voz, a luz primeira,
que ousou rasgar a penumbra onde vivia mergulhado.
Sem saber bem porquê, acreditei,
quando disseste que as minhas mãos eram capazes de construir o futuro!
Agora, que a tua presença se insinua na minha existência,
abandono as margens do lago, onde por companhia, vagueava o meu reflexo…
Não mais receio o infinito que me cerca.
Estendo as longas asas de pássaro alado,
no imenso azul, de que é feito o céu, e plano alto…
Tão alto, que escuto os segredos pela aragem contados,
e alcanço as estrelas, em pleno resplendor do dia!
Fazes-me crer que todos os sonhos são possíveis…
Não vês tu no meu sorriso, a infindável dança das flores,
que adornam as colinas do tempo?
Se é o mesmo sol, de pétalas ouradas e exalantes,
a iluminar as nossas faces;
se é a mesma brisa, renovada em cada amanhecer,
a perfumar os nossos gestos;
se são as mesmas aves, a trespassar o oxigénio de que nos alimentamos;
então, porque outros me olham com estranheza?
Não terei eu a mesma capacidade de experimentar júbilo ou melancolia?
Também os meus olhos sabem rir e chorar,
e à noite, deita-se igualmente a meu lado, a esperança de um mundo sem dor…
Não quero que se enterneçam,
com aquilo que está para além do meu poder.
Antes, preciso da veemência que tem a tua voz,
quando depois de uma queda, incita a de novo me erguer.
Comigo repartes a poesia que possuem as cores do arco-íris,
e assim, me ajudas a pintar de suave realidade,
os fugidios retalhos da minha ilusão.
Foste tu quem me ensinou a amar a Terra,
e me desvendou que a água que dos meus dedos escorre,
faz germinar as sementes, que primeiro lancei no vento.
É verdade! As minhas mãos também têm o dom da vida!


(escritora)