sábado, 7 de junho de 2008

BATER À PORTA DA SOLIDÃO


Sem sequer me conhecer, convidou-me logo a entrar. Antes mesmo de eu lhe poder explicar que era apenas uma vendedora a tentar impingir-lhe os meus produtos, ofereceu-me café e pôs tudo quanto tinha sobre a mesa.

Ela não dava espaço às minhas palavras, dizia-me que vivia sozinha há quinze anos e que precisava muito de encontrar um anel que tinha perdido há cerca de uma hora. O melhor seria começar a procurar na sala; ver debaixo dos sofás, dentro dos cinzeiros e atrás dos livros.

Queria desculpar-me, dizer que tinha muita pena, mas que não podia ficar. Ela, porém, não me ouvia e deu-me um banquinho para eu espreitar em cima de uma prateleira. Aquilo tornou-se uma invasão à minha disponibilidade, um jogo para o qual eu simplesmente não tinha tempo.

Ela era uma velhinha toda branca, guarnecida de sorrisos e de simpatia. Comparado o seu corpo já pobre de equilíbrio, eu tinha a juventude que lhe convinha, pois, podia chegar com facilidade aos lugares mais perigosos da casa.

Olhei para o meu relógio de pulso, que, entretanto, tinha parado. Ela encheu-me as mãos de biscoitos e puxou-me atrás dela, como a um gato, pela escada acima. No seu quatro havia dúzias e dúzias de caixinhas espalhadas pelo chão, as quais provavelmente contavam a história da sua vida. Havia ainda uma boneca com laços azuis e um jeito dormente de não dar por nada.

Eu tinha mesmo de me libertar daquela melodia, não podia ficar no meio das suas rosas. O anel que ela procurava não devia fazer-lhe falta nenhuma. Mas ela sentou-se numa cadeira de baloiço e contou-me a saudade que tinha daquele anel, que, de entre todos, era o mais pequeno.
Entrava uma ligeira brisa pelas cortinas transparentes do seu olhar. Ela tinha um livro nas mãos e de repente ficou tão ausente, que eu não tive coragem para quebrar o seu silêncio. Depois, propôs que, se eu lhe encontrasse o anel, ela me ofereceria um livro sobre como cuidar das flores.

Eu não possuía forças para sair fora daquele fogo cerrado de ternura. Além disso, ela não me ouviria nem que eu lhe gritasse aos ouvidos. Agitei os braços em sinal de rendição, porém, ela não via a minha bandeira branca. Arrastava-me já pelo corredor e abria a varanda da sua solidão: as flores são como as crianças, precisam de ser elogiadas e admiradas todos os dias.

Se eu tivesse vindo com mais vagar, talvez não me importasse de ouvir as suas longas memórias. Contudo, naquele dia, eu estava ali para vender os meus produtos e, por isso, tinha de recuperar o meu poder de persuasão, se queria evitar a completa derrota.

A minha voz sonante e forte, falou-lhe acerca de todos os catálogos que eu encontrara na mala. Mas ela permanecia numa fortaleza tão cheia de tranquilidade, que nenhuma promoção ou desconto, por mais fantásticos que fossem, a conseguiriam abalar.

Levou-me consigo até aos armários da cozinha, onde tudo tinha um sabor a mel puro. Lá fora, era quase noite e eu tinha de fugir de qualquer maneira. A porta estava aberta, mas alcançá-la era como quebrar um encantamento, não via como desligar-me do seu abraço. Deveria confessar-lhe o meu desdém, dizer que não me interessava minimamente por flores, nem tinha paciência para procurar coisas pequenas e insignificantes. Precisava de colocar um ar grave e sério no rosto, de lhe mostrar toda a minha mesquinhez e o meu veneno.

O meu relógio continuava quieto e eu já tinha perdido o valor real dos meus produtos e a distância com a qual sempre lidara com os outros.

Desisti. De mim, começaram a nascer os primeiros gestos desinteressados, os primeiros cânticos de ternura. Peguei-lhe nas mãos e agradeci o tempo que me dera. Olhei e vi o anel nos seus dedos.


DESENHO: João (enquanto espera pelos resultados dos exames...)
TEXO: Regina

6 comentários:

Rodriguez disse...

O conto é muito bonito, de uma tristeza e solidão contagiantes mas ternas e belas, porque tudo quanto é triste pode ser bonito. Gostei muito. Quanto ao desenho, é o espelho de uma alma intensa, que extravaza para o papel sob formas e cores harmónicas, símbolos inteligentes de sentimentos profundos. Parabéns, João! Parabéns à escritora do conto.

Graça Pires disse...

Um texto comovente. A solidão dos outros. A nossa solidão...
Um beijo.

Victor Oliveira Mateus disse...

Agrada-me essa vendedora que ainda
conseguiu "encontrar o caminho", que ainda percebeu esse instante que a virou para o que é de facto importante... Essas transformações
vêm sendo cada vez mais raras!
1 abrç.

teresa g. disse...

Lindo! Os mestres estão onde menos se espera, não é! Pena que não haja mais relógios a parar por magia.

Parabéns ao João!

Anônimo disse...

Isto é ao contrário do que costuma acontecer.
Mas deu-me uma ideia de como lidar com vendedoras de produtos, de modo a serem elas a quererem desamparar-me a loja.

Enfim, também sei que há realmente pessoas com a necessidade premente de companhia, aqui retratada...

Beijinhos e boa semana.

Anônimo disse...

este texto tão cativante recordou-me um meu em que acontece algo muito próximo do que aqui descreves, mas reconheço que o fazes com mais mestria. no meu havia um gato :) de resto, era quase tudo igual, só que o teu é mais bonito! beijinho grande.