sexta-feira, 28 de março de 2008

A ÁGUA DO UNIVERSO




Quando chega às searas maduras
o pássaro
respira debaixo das águas
como uma porta aberta

O pássaro entra pelo céu adentro
porque sabe que é preciso nascer

Uma vontade divina e primordial
no lugar do cosmo

E o corpo sem nenhum mar
sem nenhum pudor
respirando até à morte

Na intimidade mais sonhada



DESENHO: Lurdes Breda
POEMA: Regina

quarta-feira, 19 de março de 2008

OS PÁSSAROS


Quem a conhece garante: “Ela só se levanta para servir o chá. Depois volta para o seu cantinho e lá fica o resto do serão sem que ninguém se aperceba da sua presença”.

A sua casa é perfeita, apesar das gaiolas espalhadas por toda a parte: nas paredes, nos tectos, atrás dos biombos, dentro dos armários, debaixo das mesas... Gaiolas vazias. Que os pássaros são para se imaginarem…Esta justificação faz parte dos seus pensamentos, apesar de nunca ninguém lhe ter ouvido dizer tal. A verdade é que ela pouco fala, limita-se a ouvir. E para além disso, só o seu sorriso, o seu sorriso mágico lhe aflora na face. Com ele, não precisa de mover as mãos para que todas as coisas se realizem, não necessita de falar para ser entendida.

A sua casa é perfeita, sobretudo, por causa das gaiolas que estão por toda a parte. A mesa da sala é extensível. À hora do chá, abre-se e é coberta por uma toada de linho branco.

Os pássaros, por serem inventados, à hora do chá esvoaçam com mais frescura pela casa toda. Em especial, por cima das cabeças das senhoras, que têm de se proteger com os finos lenços de seda. Mas graças aos pássaros nem é preciso ligar a ventoinha do tecto.

Ela costuma usar o cabelo muito curtinho e servir o chá sem bolachas, apenas com o seu sorriso a acompanhar. Há um chá diferente para cada noite e é por isso que a sua casa é perfeita.

À hora do chá faz-se silêncio e só se ouve o cantar dos pássaros. Há coisas em que é necessária muita concentração. E ela, quando serve o chá, fá-lo devagarinho, para não acordar ninguém.

No fim, senta-se no seu cantinho e pousa a chávena no regaço. Fica assim, baloiçando o seu sorriso até que todos se vão embora. Saem e fecham a porta atrás de si.

Lá dentro, as gaiolas podem ficar abertas, pois os pássaros não conseguem fugir da alma de quem os sonha.

De manhã, são eles que a fazem levantar para recolher as chávenas, tirar a toalha e fechar a mesa. As gaiolas são colocadas ao Sol.

Quem a conhece garante: “O seu sorriso é perfeito!”.

TEXTO: Regina
IMAGEM: João

terça-feira, 18 de março de 2008

Parabéns, Regina!

Querida Regina,

Desejamos que esses fabulosos girassóis, que insuflam de vida a tua imaginação, continuem a desabrochar por entre as searas do sonho e da poesia, que preenchem as margens da tua alma.
Tu própria és, para nós, como um lindo girassol, exalante de luz e de bondade.
Que Deus nos abençoe com a tua presença por muitos e muitos anos…
Feliz Aniversário!




Com carinho,
Lurdes e João.

sábado, 15 de março de 2008

A INÉRCIA



O meu vizinho acorda todos os dias com uma enorme determinação de fazer qualquer coisa pelo mundo. E tem pena de não ter nenhuma ideia original. Às vezes ocorrem-lhe sonhos fantásticos. Mas, assim como surgem das profundezas oníricas, assim se dissipam, logo que a lâmpada do bom senso se acende.
O meu vizinho está a ficar velho de tanto pensar. Na verdade, nem se considera grande conhecedor dos mecanismos do mundo. Nem disso, nem de nada. Toma uma aspirina por dia por causa do coração. Porém, esta prescrição médica, não altera o rumo dos acontecimentos.
Ele mora no último andar do prédio e aproveita essa vantagem para colocar moinhos de papel em todas as suas janelas e varandas. Há dias em que nem a mais pequena brisa sopra. Essa imobilidade eólica faz com que o meu vizinho fique muito deprimido. Quando isso acontece, ele compreende, com aguda lucidez e desespero, que as coisas funcionam num ritmo tão certo, que ninguém pode ficar à espera das mudanças do universo. Apesar de tudo, o coração não cessa de bater e os moinhos de papel acordam para acelerarem a vida. Há dias em que anda tudo pelos ares, em que se tem de calafetar as portas e apertar as mãos contra o peito.
Não existe nada que se possa fazer pelo mundo. O meu vizinho fecha os olhos e sonha com estradas automáticas que, como tapetes rolantes, possam transportar as pessoas para todos os sítios. O problema é que essas estradas teriam de andar a uma velocidade demasiado reduzida para que os seus utilizadores pudessem entrar ou sair.
Na casa do meu vizinho encontram-se muitos cadernos de papel quadriculado espalhados por cima de todas as mesas. Nessas folhas, existem inúmeros desenhos feitos com base em cálculos matemáticos. Também há um sem fim de maquetas, que o meu vizinho não consegue explicar. São miniaturas cheias de alavancas, roldanas e planos inclinados. Nenhuma daquelas engenhocas funciona. E as partes que têm algum movimento, deslizam ou rodam, mas sem qualquer finalidade.
O meu vizinho pensa na vida, contudo, não sabe nada de assuntos práticos. Apenas sonha e tem fascínio por sítios altos. Se pudesse, inventaria um elevador que nunca parasse de subir.
Ele não tem ilusões quanto ao rumo da humanidade. É exactamente por isso que quer dar o seu melhor. A mulher com quem tinha casado há mais de quarenta anos, cansou-se de o acompanhar naquelas especulações existenciais e deixou-o. A partir do momento em que passou a viver sozinho, ficou mais à vontade e deixou as maquetas espalhadas pelo chão.
Agora tudo é mais fácil. Junto dos moinhos de papel, pôs vasos com girassóis que cresceram de uma forma descomunal. Dentro de casa, já quase não se vê a luz do dia. Isto não lhe faz qualquer diferença, uma vez que está tão absorto no labirinto dos seus pensamentos, que se esquece de tudo o resto. O meu vizinho é um indivíduo que vive só para dentro. Isso acontece, não por vontade própria, mas porque ele não consegue encontrar um jeito para se infiltrar no mundo real.
Não há nada que mais o entusiasme do que a acção que cada pessoa é capaz de concretizar. Na verdade, ele age para além das suas forças. Ainda assim, sente-se profundamente insatisfeito. Quanto mais pensa na vida, maior é o seu estado de prostração.
Conforme os dias passam, todos os seus projectos vão sendo abandonados. Nas suas invenções, não há uma única roda que não esteja já partida. Nem um único desenho que não tenha ficado esborratado por extensas manchas de humidade. Todas as coisas estão em ruína. No entanto, para ele, quanto mais nítida é essa decadência, mais obstinada é a sua determinação em querer fazer qualquer coisa pelo mundo. O único problema é que não sabe por onde começar. E sofre porque se apercebe que, em virtude da idade, esta indecisão pode parecer absurda, para não dizer ridícula. Ele devia preocupar-se, não com o que quer começar, mas sim com o está para acabar. E até isto é triste. Porque, de tudo quanto fez ou tentou fazer, nada concluiu. Melhor dizendo, no âmbito da inutilidade, todos os objectivos se concluem. Mesmo que fiquem por fazer. O meu vizinho está ciente de que pode morrer e deixar tudo tal como está, sem que com isso advenha qualquer prejuízo para o mundo. Apesar dessa certeza, não desiste.
À medida que o tempo passa, mais urgente e desesperada é a sua vontade de mudar o mundo. Pelas madrugadas, ouço os seus passos de um lado para o outro. Toma as aspirinas por causa do coração. Mas esse cuidado de pouco vale, uma vez que ele não descansa nem se alimenta como deve ser. Os seus girassóis continuam a crescer a um ritmo desenfreado. As folhas e as raízes já devem ter entrado pela casa adentro.
De uns tempos para cá, deixei de me cruzar com o meu vizinho nas escadas. Todos os dias ele vinha buscar a correspondência. Se deixou de o fazer, é porque deve estar acantonado dentro de casa. Os seus passos são os únicos sinais da sua existência. Mas já nem sei se os ouço, ou se eles são um hábito que ficou a ecoar nos meus ouvidos.
Para poder sossegar, teria de subir as escadas e bater-lhe à porta. Todavia, acho preferível que tudo fique como está. Enquanto os moinhos de papel estiverem activos, o mundo estará a salvo.


TEXTO: Regina
ILUSTRADO POR: João

sexta-feira, 14 de março de 2008

Apresentação


É para mim um privilégio, serem as minhas palavras a abrirem este espaço. Um espaço que eu desejo, que possa vir a ser, tanto de partilha e de reflexão, quanto de surpresa e deslumbre pelas vertentes artísticas expostas, a todos quantos por aqui passarem.
Não posso falar da Regina e do João, sem sentir um orgulho imenso. São dois amigos fantásticos, que eu muito admiro!
A par com o lado humano e afectivo e, numa óptica mais objectiva, tenho a realçar as qualidades criadoras de ambos. Respectivamente na literatura e na ilustração, a Regina e o João dão forma a trabalhos de grande expressividade artística. A ponte entre o universo subjectivo do sonho e da fantasia, e a realidade social que os envolve, levam a que nas suas obras se entrecruzem os aspectos: humanitário, lúdico e pedagógico.
Enquanto escritora, e numa perspectiva profissional, tenho o orgulho de dizer que são inúmeras as vezes em partilhamos diferentes pontos de vista, cruzando pensamentos e ideias. Temos, inclusive, diversos projectos conjuntos.
É minha filosofia de vida acreditar no valor intrínseco de cada ser humano, independentemente das suas limitações físicas ou psíquicas. O “acreditar” pode ser a primeira pedra, das muitas que virão, para ajudar a erigir um castelo capaz de rasgar o cinzento das nuvens.
Considero, pois, relevante, para uma melhor compreensão do conteúdo e dos objectivos deste blogue, mencionar que quer a Regina e o João, quer eu própria — com as particularidades próprias respeitantes a cada um — somos deficientes motores.
É imprescindível que eu indique esta circunstância, não por uma questão de paternalismo ou comiseração, mas para que haja uma melhor compreensão e uma maior sensibilidade perante os conteúdos aqui expostos, e os obstáculos logísticos que cercam a sua execução. Que o olhar possa penetrar para além das palavras ou das imagens e que se possa escutar o silêncio, já que este pode estar preenchido de poesia…
Divulgar as capacidades intelectuais e criativas da Regina e do João foi, sem dúvida, a razão principal que levou à criação deste blogue. No entanto, seria extremamente gratificante, poder fazer desta iniciativa uma causa socialmente útil. Na medida em que promovesse a inclusão e pudesse ser, ao mesmo tempo, um incentivo para todos aqueles que deixaram de acreditar (deficientes ou não deficientes).
Gostaríamos ainda de passar a mensagem de que o cidadão deficiente, não carece de compaixão, nem tampouco é alguém incompleto. É, tão só, alguém diferente, como o são, aliás, todos os seres humanos na sua vasta globalidade.
Não se devem subestimar ou menosprezar os deficientes, colocando-os à margem de determinadas actividades, por se considerarem inaptos para as executar. É necessário encontrarem-se dimensões de equilíbrio, entre a superprotecção e a exclusão. Há que ser-lhe facultado, o sentir-se útil. Isso é fundamental para o enriquecimento da sua auto-estima.
A deficiência, também não pode, por parte dos seus portadores, ser encarada como uma defesa pessoal, para a falta de coragem em enfrentar a vida e o mundo. Deve, antes, ser pensada como um desafio! Em termos cognitivos, é preciso colocar a aprendizagem, gradualmente adquirida, ao serviço da evolução e da realização pessoais.
Alcançar o êxito dos nossos projectos, depende, sobretudo, de nós e da nossa força interior. Quanto mais árduo for o caminho a percorrer, mais gratificante será, indubitavelmente, alcançar o seu término.
Bem-vindos a todos, sem excepção. Deixem que a força, o calor, a magia, o sonho, o riso, a poesia e a cor deste espaço, tomem conta do vosso coração. Espero que ao fecharem a janela deste lugar, que para nós é de suave enternecimento, possam dizer baixinho: “Até amanhã!”. Onde quer que nós estejamos, iremos decerto ouvir… E as nossas faces encher-se-ão de luz, pois teremos, tal qual uma estrela, um amigo mais a iluminar o céu das nossas vidas!






ACREDITAR

Foi o calor da tua voz, a luz primeira,
que ousou rasgar a penumbra onde vivia mergulhado.
Sem saber bem porquê, acreditei,
quando disseste que as minhas mãos eram capazes de construir o futuro!
Agora, que a tua presença se insinua na minha existência,
abandono as margens do lago, onde por companhia, vagueava o meu reflexo…
Não mais receio o infinito que me cerca.
Estendo as longas asas de pássaro alado,
no imenso azul, de que é feito o céu, e plano alto…
Tão alto, que escuto os segredos pela aragem contados,
e alcanço as estrelas, em pleno resplendor do dia!
Fazes-me crer que todos os sonhos são possíveis…
Não vês tu no meu sorriso, a infindável dança das flores,
que adornam as colinas do tempo?
Se é o mesmo sol, de pétalas ouradas e exalantes,
a iluminar as nossas faces;
se é a mesma brisa, renovada em cada amanhecer,
a perfumar os nossos gestos;
se são as mesmas aves, a trespassar o oxigénio de que nos alimentamos;
então, porque outros me olham com estranheza?
Não terei eu a mesma capacidade de experimentar júbilo ou melancolia?
Também os meus olhos sabem rir e chorar,
e à noite, deita-se igualmente a meu lado, a esperança de um mundo sem dor…
Não quero que se enterneçam,
com aquilo que está para além do meu poder.
Antes, preciso da veemência que tem a tua voz,
quando depois de uma queda, incita a de novo me erguer.
Comigo repartes a poesia que possuem as cores do arco-íris,
e assim, me ajudas a pintar de suave realidade,
os fugidios retalhos da minha ilusão.
Foste tu quem me ensinou a amar a Terra,
e me desvendou que a água que dos meus dedos escorre,
faz germinar as sementes, que primeiro lancei no vento.
É verdade! As minhas mãos também têm o dom da vida!


(escritora)