quinta-feira, 23 de outubro de 2008

DESPERTAR

Tudo parece um sonho bom, nem dá para acreditar! Foi um longo caminho até aqui. Um caminho feito ao contrário, mas que nos ensinou a crescer. E pensar que, ainda há pouco tempo, a última coisa que queríamos era receber lições, fosse de quem quer que fosse... Tínhamos as nossas próprias regras e só essas nos interessavam.
Tenho um nó na garganta que quase me faz chorar. Bolas! Não posso deixar que ninguém perceba. Serei a única a sentir este aperto? A malta está habituada a esconder as emoções. É que esta cena das pieguices não dá com nada...
Seja como for, o Miguel tinha de estar aqui. E não está…
— Susy... Acorda! Que cara de zombie! Tudo bem?
— Sim, claro... Só um pouco ansiosa. Achas que vai dar certo?
— Oh, não tem como dar errado, miúda.
O Necas é sempre tão confiante! Como o resto do pessoal, diga-se... É isso que nos une! É a primeira vez que estou insegura. Tenho medo de falhar, de subir ao palco e não conseguir cantar.
Estou mais nervosa do que no dia em fugi pela primeira vez das aulas com a malta. O esquema estava o tão bem preparado que não havia o que recear. Os rapazes conheciam-se todos, só eu é que fui apresentada pela Tânia.
Receberam-me numa boa! O Necas, o Hugo, o Miguel, o Rafa...
Senti logo que aquela era a minha tribo. Até aí, vivia tão afastada de tudo e de todos! As pessoas que me rodeavam não me davam espaço, faziam questão de transformar o meu mundo num inferno.
Não tinha onde me esconder. Em casa, o meu padrasto estava sempre a dar palpites, como se tivesse alguma coisa a ver comigo. Criatura insuportável! E a tontinha da minha mãe sem fazer caso. Sempre por ele, nunca por mim...
E a escola, meu Deus, a escola! Um castigo que tinha de cumprir sem saber porquê nem para quê... Uma perda de tempo, pois tinha a certeza de que o meu futuro não passava por ali. Essa certeza fazia-me ser indisciplinada. Como não estava nem aí para a matéria, tinha de me entreter de qualquer maneira. Se ao menos me deixassem estar em paz com os phones nos ouvidos, a ouvir a minha musiquinha, não perturbaria ninguém...
Em vez disso, era obrigada a distrair-me com outras cenas. E a verdade é que tinha imaginação! Os “stôres” é que não alinhavam na minha forma alternativa de participar. Se reparassem bem, veriam a dinâmica que eu passava para os meus colegas. A melhor foi quando soltei o meu hamster na sala de EVT. Toda a gente divertida e a professora a dar gritinhos em cima da mesa. Que na escola não são permitidos bichos de estimação!... Já se viu regulamento mais estúpido?
Por esta e por outras é que alinhei logo no desafio da Tânia. Tanto mais que havia um teste de matemática marcado... Nem pensar! Ela já me tinha falado algumas vezes que andava com um grupo fixe, um grupo que organizava umas coisas super loucas e no qual poderíamos libertar as energias.
Não havia perigo, o grupo só queria divertir-se, tudo numa boa, sem prejudicar ninguém. A cena que mais nos animava era voar com os skates, sobretudo, pelas escadas abaixo e por cima dos muros.
Ainda bem que eu já tinha prática no assunto e fiz boa figura diante dos meus novos amigos. Só o Miguel demorou a dar-me a sua aprovação. Isso pôs-me nervosa, porque senti logo uma necessidade inexplicável de lhe agradar. Agora sei que o Miguel se fazia de duro apenas para impressionar.
Além dos skates, tínhamos montes de outros passatempos. De tal modo que deixei de ir à escola quase por completo. A directora de turma avisou lá para casa, mas a sorte é que ninguém ligou, nem o metido do meu padrasto. A minha família toda achava-me um problema sem solução.
Para mim, foi um período feliz. Deixei de me sentir sozinha e até o Miguel começou a dar-se bem comigo. Para falar verdade, começou a tratar-me como se eu fosse uma princesa. Nunca na vida tinha tido tantos mimos, nunca me tinha sentido especial.
Todos os rapazes eram cúmplices por viverem na mesma instituição, mas o Miguel era o único que não tinha parentes, nem afastados. Teve de aprender a safar-se sem ajudas. Isso tornou-o forte, destemido e até um bocadito arrogante. Sabendo destes factos, mais encantada me sentia por ele se desarmar diante de mim.
Afinal, havia tantas formas divertidas de passar o tempo, que a última coisa que queríamos, era pensar ou preocupar-nos com o futuro. O futuro era uma cena de cotas, assunto para sermões e missas cantadas.
Não, a nossa música era outra! Em casa da Tânia podíamos estar à vontade, a ouvir altos sons. Os pais trabalhavam até tarde e não a controlavam em nada. Invejávamos tal sorte, embora ela não parecesse muito entusiasmada com a independência que tinha. Era difícil perceber a melancolia da Tânia em relação a isso. Mas não fazíamos perguntas, já que a sua casa nos servia de refúgio! Lá, ouvíamos música, conversávamos, jogávamos consola, enfim...
Porém, a rua é que era o nosso território. Éramos os audaciosos exploradores da selva urbana! Não tínhamos medo dos becos sem saída, porque sabíamos vencer todos os obstáculos. Saltávamos, braços abertos, de qualquer altura, como pássaros cheios de alegria.
Nas tardes de montanha-russa, os nossos risos voavam numa vertigem sem fim. O mundo todo, ao contrário, fazia com que as coisas ficassem mais arrumadas, mais nos sítios certos. Sim, até as nossas ideias assentavam melhor dentro da cabeça!
Só a Tânia é que ficava agarrada ao solo, porque era pouco dada a l+oopings. Vingava-se nas pipocas, mas nem assim se consolava. Disse-nos uma vez:
— Todos os meus sacos de pipocas estão vazios...
— Ena, essa é muito profunda! — gozou o Rafa.
Mas esta e outras provocações não eram levadas a mal, pois o grupo era marcado por uma total cumplicidade.
Embrenhados com tamanhas aventuras, nunca mais voltámos à escola... Viva! Escola para quê? O engraçado é que parecia que ninguém dava por nada.
Deixámos de ter horas marcadas e os dias começaram a entrar pelas noites adentro. Adormecíamos em qualquer lugar, com os olhos esfarrapados de estrelas. Elas cresciam nos nossos sonhos...
Por isso, quisemos segui-las para além dos limites da cidade. Caminhámos sem rumo, orientados apenas pela vontade de encontrar a alma do mundo. E foi fácil chegar ao denso silêncio da floresta, invadir os seus trilhos mais secretos. Tudo para podermos vislumbrar melhor as estelas.
Estávamos maravilhados pela beleza do céu, o universo nunca se tinha mostrado tão mágico! Mas, o silêncio e a escuridão à nossa volta, pela primeira vez, fizeram-nos sentir vulneráveis.
Aconchegámo-nos mais uns aos outros, porém, surgiam pequenos ruídos assustadores, que não sabíamos se era de corujas ou de outros seres mais tenebrosos... Nós, os audaciosos, estávamos com medo. E não tardou nada para estarmos em pânico!

Por tanto querer sair dos limites, acabámos por nos perder. Não sabíamos o caminho de regresso, essa era a verdade. Para sair dali, daquele escuro arvoredo, tínhamos de arriscar. O perigo parecia rondar-nos e qualquer gesto acabaria por nos denunciar.
Por muito pavor que sentíssemos, não dava para ficarmos ali parados, era urgente procurar uma saída. Miguel, destemido como sempre, prontificou-se para avançar sozinho na verificação da área. Claro que discordámos em uníssono contra tal ideia. Naquela situação, era fundamental mantermo-nos todos juntos. O problema é que Miguel tinha tanto de destemido como de voluntarioso. E foi sem darmos conta, que ele desapareceu de um momento para o outro.
Começámos a chamá-lo em todas as direcções, convencidos de que estaria por perto. Mas os minutos foram passando sem que obtivéssemos resposta. A partir dali é que nos sentimos verdadeiramente perdidos! Um pesadelo! Entrámos num terrível pesadelo...
A noite devorou-nos duma forma medonha, nas suas goelas só havia precipícios de bruma e escuridão. Deixámos de ter pé, sentíamo-nos a escorregar pelas ravinas do desespero. Estávamos deveras perdidos!
Nem coragem tínhamos para continuar a chamar. A voz ficou-nos presa por dentro, de tal jeito que só ouvíamos o bater dos próprios corações. Foi nessa altura que a Tânia entrou em estado de choque, mas, por uma razão tão cómica, que nos fez rir a todos e aliviou um pouco a nossa tensão.
— Caramba! — gritou, como se tivesse sido picada por algum insecto — Estamos sem comida!... Nem uma bolacha sequer!
— Oh, apanha-se já um coelho! — brincou o Necas, em tom de ironia e nítida chacota. Mas, a verdade é que cada um vivia o medo à sua maneira. Ora, se reflectíssemos bem, não havia muitos motivos para tal, além do escuro e do desconhecimento do terreno. Miguel era esperto e, com certeza, saberia livrar-se de qualquer problema.
O melhor que tínhamos a fazer era mesmo manter a serenidade e esperar que o Miguel regressasse trazendo a luz da madrugada. Não havia perigo, poderíamos até dormitar para que o tempo passasse mais depressa. Éramos crescidinhos para ficarmos apavorados por nada!
Por nada?! O lusco-fusco do alvorecer fez-nos acordar ainda mais sobressaltados... Do Miguel, nem sinal! Olhámos em redor e muito pior do que a escuridão, eram os arbustos altos e fechados, dos quais não poderíamos fugir. Estávamos presos numa armadilha e mesmo que gritássemos, quem nos iria socorrer?
Não tínhamos ninguém que se importasse connosco, que desse pela nossa falta... Há tanto tempo que tínhamos deixado de existir!
— Temos de telefonar para qualquer lugar... — exclamou o Rafa, com a respiração meio ofegante.
— Este cromo não existe! — contrapôs Hugo, bastante irritado. — Se tivéssemos rede, acaso teríamos passado aqui a noite toda? Ó meu! Vê se atinas...
Rafa, envergonhado, e para tentar desfazer a má impressão, saca do bolso aquilo que poderia ser finalmente um trunfo. Tratava-se de um objecto que, a princípio, não identificámos. Teve de nos explicar:
— Isto é uma bússola! Nas aulas de geografia aprendi que com este instrumento, ninguém se perde.
— Que máximo! Este puto é um crânio! — proferiu o Necas, impaciente e carregado de má vontade. — Para quê serve essa coisa?
— Bem... Acho que... seguindo a seta, podemos encontrar o Norte...
— Hmmm! E depois?...
— Depois... sei lá! Mania de complicarem tudo... — resmungou o Rafa, de sobrolho franzido. Ele só queria ajudar, mas não conseguia porque todos se mostravam de mau humor. Se o grupo encarasse aquilo como uma aventura, talvez tudo fosse mais fácil de resolver. Só que não havia hipótese. A Tânia, com os nervos à flor pele, gemia de fome e todos nós estávamos preste a explodir.
A mim, o que mais me preocupava era o Miguel. Que lhe teria acontecido? Tinha um pressentimento que me angustiava profundamente. Adivinhava que ali por perto existiam íngremes penhascos, abismos, escarpas a caírem para o mar.
— Ouvem, ouvem o mar? — murmurei, quase num queixume. Olharam-me como se fosse maluca…
— Que mar? — perguntam em coro.
— Aquele que levou o Miguel! — As lágrimas soltaram-se sem pudor, dando largas à minha aflição. Com esta minha abertura de alma, fiz com que os outros também se despojassem de toda a rebeldia juvenil e passassem a agir como meninos tristes e desamparados. Naquele momento, a única coisa que desejávamos era a protecção de uma casa, de uma família, ou até, imagine-se, de uma escola...
Tantas oportunidades desprezadas, lamentámos! Que seria de nós? Ficaríamos ali até quando? Que coisa terrível. As horas iam passando e nada... Só a sede, a fome e o cansaço...
Foi quando estávamos no limite das nossas forças que ouvimos, ao longe, o barulho de um motor. Em seguida, chegou-nos o som de sirenes, que se deslocavam em várias direcções. Haveria fogo? Apurámos mais os sentidos e não detectámos nada. Mas então, o que estaria a acontecer?
O milagre! Jipes dos guardas-florestais e ambulâncias, patrulhas com radares, cães pisteiros.... Todos os meios activados à nossa procura... Mal podíamos acreditar! E o mais incrível ainda, foi que a operação de resgate era chefiada pelos pais da Tânia, pelos responsáveis do lar onde viviam os rapazes, por muitos professores da escola... E a correrem para mim, de braços abertos, vinha a minha mãe, o meu padrasto, os meus tios e alguns vizinhos!
Meu Deus, que emoção!... Afinal, toda a gente se preocupava connosco, tínhamos sido seguidos nas nossas deambulações, observados ao longe, passo a passo, para o caso de cairmos. Permitiram-nos uma liberdade, mas não se pouparam a mil cuidados e desvelos!
Sim, tínhamos aprendido a lição... A partir daquele dia crescemos, tornámo-nos conscientes e responsáveis, jovens com muita vontade de recuperar o tempo perdido.
Agora existe a dor da perda do Miguel que, tal como o meu coração adivinhara, se tinha incautamente precipitado por uma ravina e caíra ao mar.
Para que o seu desaparecimento não tenha sido em vão, nós esforçamo-nos para dar o nosso melhor. Dedicamos-lhe cada vitória, cada desafio que enfrentamos. Nas derrotas, encontramos na sua lembrança a força que precisamos para seguir a nossa jornada pela vida!
Sempre me disseram que eu tinha uma voz bonita. Resolvi aproveitar esse dom, como diz a minha mãe, daí que eu e os meus companheiros tenhamos formado uma banda. Inacreditavelmente, o meu padrasto ofereceu a garagem para nós ensaiarmos.
Agora, que estamos prestes a acabar o ano lectivo, eu e os meus companheiros iremos subir ao palco, montado no ginásio. É a festa de final de ano. De mãos dadas, encaminhamo-nos para o palco. Há um minuto de silêncio em memória do Miguel. Depois, um mar de aplausos ressoa por todo o ginásio. Um acorde de viola marca o início da melodia. A minha voz cresce, cresce… É uma bandeira de esperança a fender a linha infinita do horizonte, onde o futuro se esconde!

Desenhos: Lurdes Breda
Texto: Regina

Conto juvenil publicado no jornal “NOTÍCIAS DE COLMEIA”

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

TANTOS TESOUROS


Gosto das manhãs brancas como o sal
É por isso que não acordo
Para manter as janelas perfeitas
Sem o vapor cristalizado das narinas

Não acordo
E cubro de ouro todos os meus espelhos
Porque quero ter certeza de que vou crescer
Retendo a respiração até aos pés

O sal refinado duma flor
É tudo quanto preciso

E tenho mais
Tenho o pó que sobe num remoinho
Para fazer um desenho dourado



Desenho: Lurdes Breda
Poema: Regina